quinta-feira, setembro 29, 2005

FALA O ROTO DO REMENDADO

“Cada época deixa mais traços dos seus sofrimentos do que da sua felicidade: são os infortúnios que fazem a história”

Johan Hiuzinga (historiador holandês)



Nas últimas semanas, o folhetim sino-joponês deu ao mundo mais algumas páginas das suas infindas e agridoces relações. Em várias cidades chinesas, sobretudo em Shengzen, uma zona económica especial junto a Hong Kong, e em Pequim, chorrilhos de chinos saíram à rua, aparentemente enfurecidos, a gritarem palavras de ordem contra os nipónicos. Durante o cortejo, alguns manifestantes queimaram bandeiras japonesas e arremessaram pedras a edifícios e lojas adstritas àquele país, perante o olhar letárgico da polícia. Entre a berraria ouvia-se, claramente, “[V]iva a China, abaixo os porcos japoneses”. Enquanto isso, as câmaras da comunicação social, para gáudio da tropa-fandanga, registavam todos os momentos, e sempre que a objectiva se direccionava para um determinado ponto, inflamava-se o tropel. Terminado o cortejo, felizes, regressaram todos a casa, sem deixar esconder, no entanto, um sorriso nos lábios.
No centro da polémica, desta vez, está a omissão nos manuais escolares do país vizinho dos massacres cometidos pelas tropas nipónicas, na década de trinta, em território chinês. As preterições das atrocidades cometidas pelos japoneses – só em Nanquim foram mortos cerca entre 50 000 a 300 000 civis chineses – conduziram às manifestações nacionalistas. Será mesmo assim, ou tratou-se de mais uma patranha das autoridades de Pequim? Como é que uma lacuna de um manual de história, da responsabilidade de um simples editor, quando sabemos que existem mais manuais, pode despoletar tamanha algazarra? Por outro lado, sabe-se que estes tipos de manifestações são, essencialmente, perpetradas por estudantes. Acontece que, em algumas das cidades que assistiram ao desvario nacionalista, não há vestígios de universidades por perto. Alem disso, e principalmente, num país em que a policia não deixa “dar um ai”, como é que permite que uma autêntica fanfarra faça tamanho desacato? Não é preciso muito para perceber que o que nos é dado aponta para uma questão política e estratégica muito mais densa. A dimensão e o radicalismo das manifestações – só em Pequim saíram à rua 10 000 manifestantes – assemelharam-se mais a uma encenação orquestrada pela propaganda chinesa do que a um genuíno movimento social.
Em primeiro lugar, é importante perceber que a ascensão económica da República Popular da China (RPC) tem conduzido a um novo reajustamento de forças na Ásia e à pretensão de esta se afirmar como a maior potência da região. Durante décadas este país soube afirmar-se como uma potência geopolítica, mas no campo económico não passou duma nulidade. Foi o Japão, com a conivência americana que desempenhou, após a Segunda Guerra Mundial, um lugar de destaque na Ásia e um papel importante no mundo. Hoje, a China pretende ocupar este lugar.
Se do ponto de vista económico as relações entre a China e o Japão parecem estar bem encaminhadas, no domínio político os diferendos estão a agudizar-se. A recente ambiguidade dos nipónicos no tratamento da questão de Taiwan, não deixou satisfeitas as autoridades de Pequim. Além disso, a continuada disputa pela soberania de pequenas ilhas recheadas de recursos naturais, num momento de febre pelo ouro negro, não parece ajudar. Mas o que mais parece ter fomentado a saída às ruas dos manifestantes chineses, é o esforço que o governo de Tóquio tem vindo a desenvolver com vista a ganhar um assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Os japoneses, neste objectivo, têm a seu favor as fortes contribuições para a Organização das Nações Unidas (ONU), as participações em missões de paz e humanitárias e o apoio dos Estados Unidos da América (EUA).
Neste previsível cenário, a China teria uma maior dificuldade de se afirmar como potência exclusiva da Ásia. O que os chineses pretenderam que passasse para a comunidade internacional foi a imagem de um Japão militarista e imperialista, como forma de enfraquecer a posição política e diplomática do país do Sol Nascente. O curioso, é que a RPC, em termos de direitos humanos, não é exemplo para ninguém. Será que o massacre dos monjes tibetanos ou o extermínio cultural dos Uigures, na província de Xinjiang, aparecem nos manuais escolares chineses? A vitimização pelas feridas do passado soa a ridículo, quando a história recente do Império do Meio, para não falar do presente, está abarrotada de momentos infaustos.
Será em Setembro do corrente ano, em Nova Iorque, que finalmente será discutido o alargamento do Conselho de Segurança da ONU. Até lá, pequenos quiproquós, omissões, incorrecções ou incompreensões, por parte dos nipónicos, poderão descambar em novos festivais de fogueiras e pedrada. Apesar de tudo, as tentativas dos chineses em infamar a imagem do Japão, não parecem ser suficientes para travar a presença deste país no principal centro decisório mundial. A partir dessa altura, possivelmente, os chineses perceberão que a Ásia não é só deles, mas de todos os asiáticos.

Jorge Tavares Silva

(Artigo publicado em Maio de 2005 no Jornal de Negócios)